quinta-feira, janeiro 25, 2007

da reminiscência platónica

Cena da Ilíada, de Homero


















Encontrarás perto da morada dos mortos, à esquerda, uma fonte
Junto a ela, todo branco, ergue-se um cipreste.
Essa fonte, não vás lá, dela não te aproximes.
Outra encontrarás que vem do lado da Memória,
água fria que brota. Ladeada de guardas.
Diz-lhes: Sou a filha da Terra e do Céu de estrelas,
mas tenho origem no Céu. Isso sabem-no vocês.
A sede consome-me e mata-me. Ah! dêem depressa
a água fria que brota do lago da Memória.
E permitir-te-ão beber da fonte divina,
e então entre todos os heróis, irás reinar.

Ilíada, Homero/Diels, 5ªEd.I,p.15 -
edição portuguesa, Livros Cotovia

segunda-feira, janeiro 22, 2007

o derradeiro frio no coração do homem

Edith Sitwell 1887-1964


















Poeta inglesa, crítica, biógrafa, novelista e jornalista.
Manteve relacionamento íntimo com Virgínia Woolf; com a sua
governanta e professora de Francês Helen Rootham -excelente
tradutora- e foi amiga, com grande cumplicidade, de T.S.Eliot.
A poesia de Edith Sitwell tem a chancela do modernismo de 90;
a rara qualidade expressa na sua poesia, não o moderno "selvagem",
mas o estilo fino e experimentalista do poema, condensado em imagens dum
jogo poético, ora de discernimento e do oposto [o nonsense],
ora do metaforismo harmónico, oposto pelo dissonante...
Neste ano que decorre, 2007, passam 120 anos do nascimento de Edith Sitwell.

[...] Ah, em que era eu inferior à Morte,
Que à verdade faltasses? Agora, docemente, ó Idade,
Minha só companheira, aperta-me com força, para que eu
Esqueça o teu beijo. Os fogos foram do meu peito.
E, todavia,com se em chuva se fizessem,
O próprio coração, as minhas lágrimas
são fiéis ainda.

Há outra linguagem da Morte?
Por isso aqueles de que temos saudade voltam
Não mais! Por breves palavras de amor dizem...

Como ouviremos no clamor de Babel?
Não fazem ruído:
Os grandes movimentos do mundo passam sem estrondo;
Os dourados jovens,
Primavera grande, ao pó voltam como a quem amem...
E parte-se o coração sem ruído.*

Escreve Jorge de Sena a propósito da poesia de E.Sitwell:
"[...] é uma lição e um exemplo de arte poética, como é
também da magna missão oracular da poesia, está longe
de ser simples. Todo o seu estilo visa à expressão directa
de uma complicada transfiguração. As imagens sucedem-se,
inteligíveis na sua beleza inesperada, mas misteriosas na
relação para com a transfiguração que representam. Uma
mulher de olhar profundo se contempla se contempla e ao
fluir da vida, sabendo as formas que o fluir em todos os
tempos tomou. E a sua poesia, para significar essa presença
permanente do que se passa, é um sound like fear 'som como
terror', no qual segundo disse W.B.Yeats, 'regressa à literatura
algo ausente: [...] paixão enobrecida pela intensidade,
o sofrimento, a sabedoria' [...]".
________
*Poema The Road to Thebes, traduzido por Jorge de Sena,
ed.Relógio D´Água, Maio de 2005.

domingo, janeiro 21, 2007

criadores de tudo


as gerações
neste Mundo,
a infância regressa
ao rio profundo,
à memória da paisagem
a minha história
a imagem, a calçada
em pedra livre
e castanha
a cor perdida na lava
a lagrimar sozinha
num sentir
quase humano
longe de ruídos
de antanho
prosa cantada
em lugar estranho
e ninguém diz nada
aqui neste caderno
onde a saudade
se recolhe
triste e arrefecida
num dizer
de nada querer...

as gerações
este Mundo
perderam tudo
sem vontade
de lutar.

adopção

ingénua e sorridente
criança, sem norte
nem segurança
nas mãos de qualquer
sorte, alma e mistério
do mundo desigual
numa tarde colorida
de aflições; a mãe
percorre montes
e valados perseguida
escondendo a cria,
em tempos rejeitada,
numa fúria de correr,
chegar cedo
e protegê-la
em qualquer lado...

sem medo
da justiça de Salomão
da criança cortada
em duas partes;
sim, ou não?
ninguém sabe.